segunda-feira, 2 de março de 2009

MORADOR DA COMUNIDADE ESCREVE CRÔNICA SOBRE A ZONA NORTE

CRÔNICA
ZONA NORTE
Por Flávio Araújo, jornalista (morador de Campinho)

Calçadas irregulares e canteiros sobre os muros. Um santo na fachada e cadeiras nos portões. Crianças em alarido corre-corre, pipas e balões convivem como cães e gatos. A prima namoradeira e o irmão galanteador. Filhos indesejados e queridos como nunca. Sopro de vento que faz curva em um canto de muro, sobe redemoinho de poeira, folhas, rabiolas, fitas cassete e santinhos de políticos. Estes também passam por ali em pé-de-vento.
Churrasco improvisado, gritos de gol, cerveja gelada, brigas, vômitos, choros e sorrisos. Promessas não cumpridas. Respeito a São Jorge. Lua ilumina a mangueira no quintal. Formigas, muitas e variadas formigas. Marimbondos e abelhas de padaria que fazem mel de açúcar União. Um café ao despertar e uma pinga para adormecer.

Cajá, pitanga, carambola, jambo, banana, abiu e maracujá. Galinhas, ovos, alface, couve e bertalha. Angu à mesa. Festa junina com casamento caipira, prisão e fogueira. Carnaval de carrascos e Clóvis. Pedras portuguesas pintadas a guache. Dezenas de gaiolas de pássaros para cuidar. Cacos de vidro sobre os muros, restos de obras, pneu furado, estilingue, ratoeira e caminhos de caracóis.

Berimbau e cuia de chimarrão são enfeites na sala. Tapetes por toda a casa. Cortinas que nos permitem acordar tarde e escondem nosso amor dos curiosos. Fofoqueiras dão plantões médicos e policiais. Paralelepípedos. Viados, piranhas e cornos. Xerifes e medrosos.

“O Zé conserta”. Televisão, rádio, carro, geladeira, torção de tornozelo, cabelo ruim, sapato furado, tênis descolado, joanete, unheiro e reza braba. “Zé conserta!” Cobreiro se reza com algodão embebido em azeite ou galho de arruda. Depois, incendeia-se o objeto para queimar o mal, herança da Inquisição.

Time de botão se identifica cortando o nome dos jogadores no jornal, colando-se na durex, cortando rentinho e colando no craque. Falta o goleiro? Não tem problema. Enche-se uma caixa de fósforos com parafusos e porcas, embala-se várias vezes em papel ofício, cola-se tudo e pronto: tem-se um goleiraço.

No fundo do quintal há ervas para quase todos os males. Só não se cura mal de amor. Já comeu rolinha, capturada na arapuca de peneira? E bunda de saúva? E rã, pescada na vala? Discoteca com pastilhas e pisca-pisca de árvore de Natal. Fotos em branco-e-preto, TV idem. Novela é religião, depois da novena. A santa passa uma semana na casa de cada família e os meninos acham que Deus é meio surdo, pois o terço é muito repetitivo.

Corações plenos, mesa farta e repleta de bocas esfomeadas. Vizinhos, carteado. Horóscopo, quiromancia e búzios. Costureiras prestam serviço ao padre e ao pai-de-santo. Bordam a estola e a capa de Exu. Velas, despachos, bêbados irremediáveis. Telha quebrada, goteira, ladeira. Linha de trem, que passa e sacode a quadra da escola de samba. Carimbó, afoxé e umbanda. Rouxinol que ainda canta na varanda.

1 comentário

Anônimo disse...

Fiquei aqui pensando quanta vida há em um lugar que conhecemos tão pouco ou quase nada. Para mim, que não sou do Rio, pior ainda. Mas, das palavras do autor dá pra entender porque, a despeito das supostas dificuldades financeiras dessa gente toda, é ela, muitas vezes, mais feliz do que o resto todo da cidade.

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